Não vim trazer a paz, mas a divisão – Não penseis que Eu tenha vindo trazer paz à Terra; não vim trazer a paz, mas a espada; porquanto vim separar de seu pai o filho, de sua mãe a filha, de sua sogra a
nora; e o homem terá por inimigos os de sua própria casa. (Mateus, 10:34 a 36.)
Vim para lançar fogo à Terra; e que é o que desejo senão que ele se acenda? Tenho de ser batizado com um batismo e quanto me sinto desejoso de que ele se cumpra!
Julgais que Eu tenha vindo trazer paz à Terra? Não, Eu vos afirmo; ao contrário, vim trazer a divisão; pois, doravante, se se acharem numa casa cinco pessoas, estarão elas divididas umas contra as outras: três contra duas e duas contra três. O pai estará em divisão com o filho e o filho com o pai, a mãe com a filha e a filha com a mãe, a sogra com a nora e a nora com a sogra. (Lucas, 12:49 a 53.)
Será mesmo possível que Jesus, a personificação da doçura e da bondade, que não cessou de pregar o amor do próximo, haja dito: “Não vim trazer a paz, mas a espada; vim separar do pai o filho, do esposo
a esposa; vim lançar fogo à Terra e tenho pressa de que ele se acenda”?
Não estarão essas palavras em contradição flagrante com os seus ensinos?
Não haverá blasfêmia em lhe atribuírem a linguagem de um conquistador sanguinário e devastador? Não, não há blasfêmia, nem contradição nessas palavras, pois foi mesmo Ele quem as pronunciou, e elas dão testemunho da sua alta sabedoria. Apenas, um pouco equívoca, a forma não lhe exprime com exatidão o pensamento, o que deu lugar a que se enganassem relativamente ao verdadeiro sentido delas. Tomadas à letra, tenderiam a transformar a sua missão, toda de paz, noutra de perturbação e discórdia, consequência absurda, que o bom senso repele, porquanto Jesus não podia desmentir-se. (Cap. XIV, item 6.)
Toda ideia nova forçosamente encontra oposição e nenhuma há que se implante sem lutas. Ora, nesses casos, a resistência é sempre proporcional à importância dos resultados previstos, porque, quanto maior ela é, tanto mais numerosos são os interesses que fere. Se for notoriamente falsa, se a julgam isenta de consequências, ninguém se alarma; deixam-na todos passar, certos de que lhe falta vitalidade. Se, porém, é verdadeira, se assenta em sólida base, se lhe preveem futuro, um secreto pressentimento adverte
os seus antagonistas de que constitui um perigo para eles e para a ordem de coisas em cuja manutenção se empenham. Atiram-se, então, contra ela e contra os seus adeptos.
Assim, pois, a medida da importância e dos resultados de uma ideia nova se encontra na emoção que o seu aparecimento causa, na violência da oposição que provoca, bem como no grau e na persistência da
ira de seus adversários.
Jesus vinha proclamar uma doutrina que solaparia pela base os abusos de que viviam os fariseus, os escribas e os sacerdotes do seu tempo.
Imolaram-no, portanto, certos de que, matando o homem, matariam a ideia. Esta, porém, sobreviveu, porque era verdadeira; engrandeceu-se, porque correspondia aos desígnios de Deus e, nascida num pequeno e obscuro burgo da Judeia, foi plantar o seu estandarte na capital mesma do mundo pagão, em face dos seus mais encarniçados inimigos, daqueles que mais porfiavam em combatê-la, porque subvertia crenças seculares a que eles se apegavam muito mais por interesse do que por convicção.
Lutas das mais terríveis esperavam aí pelos seus apóstolos; foram inumeráveis as vítimas; a ideia, no entanto, avolumou-se sempre e triunfou, porque, como verdade, sobrelevava as que a precederam.
É de notar-se que o Cristianismo surgiu quando o Paganismo já entrara em declínio e se debatia contra as luzes da razão. Ainda era Estranha moral praticado pro forma; a crença, porém, desaparecera; apenas o interesse pessoal o sustentava. Ora, é tenaz o interesse; jamais cede à evidência; irrita-se tanto mais quanto mais peremptórios e demonstrativos de seu erro são os argumentos que se lhe opõem. Sabe ele muito bem que está errado, mas isso não o abala, porquanto a verdadeira fé não lhe está na alma. O que
mais teme é a luz, que dá vista aos cegos. É-lhe proveitoso o erro; ele se lhe agarra e o defende.
Sócrates, também, não ensinara uma doutrina até certo ponto análoga à do Cristo? Por que não prevaleceu naquela época a sua doutrina, no seio de um dos povos mais inteligentes da Terra? É que ainda não chegara o tempo. Ele semeou numa terra não lavrada; o Paganismo ainda se não
achava gasto. O Cristo recebeu em propício tempo a sua missão. Muito faltava, é certo, para que todos os homens da sua época estivessem à altura das ideias cristãs, mas havia entre eles uma aptidão mais geral para as assimilar, pois que já se começava a sentir o vazio que as crenças vulgares deixavam
na alma. Sócrates e Platão haviam aberto o caminho e predisposto os espíritos. (Veja-se, na Introdução, o § IV: Sócrates e Platão, precursores da ideia cristã e do Espiritismo.)
Infelizmente, os adeptos da nova doutrina não se entenderam quanto à interpretação das palavras do Mestre, veladas, as mais das vezes, pela alegoria e pelas figuras da linguagem. Daí o nascerem, sem demora, numerosas seitas, pretendendo todas possuir, exclusivamente, a verdade e o não bastarem dezoito séculos para pô-las de acordo. Olvidando o mais importante dos preceitos divinos, o que Jesus colocou por pedra angular do seu edifício e como condição expressa da salvação: a caridade,
a fraternidade e o amor ao próximo, aquelas seitas lançaram anátema umas sobre as outras, e umas contra as outras se atiraram, as mais fortes esmagando as mais fracas, afogando-as em sangue, aniquilando-as nas torturas e nas chamas das fogueiras. Vencedores do Paganismo, os cristãos, de perseguidos que eram, fizeram-se perseguidores. A ferro e fogo foi que se puseram a plantar a cruz do Cordeiro sem mácula nos dois mundos. É fato constante que as guerras de religião foram as mais cruéis,
mais vítimas causaram do que as guerras políticas; em nenhumas outras se praticaram tantos atos de atrocidade e de barbárie.
Cabe a culpa à doutrina do Cristo? Não, decerto que ela formalmente condena toda violência. Disse Ele alguma vez a seus discípulos: Ide, matai, massacrai, queimai os que não crerem como vós? Não; o que, ao
contrário, lhes disse, foi: Todos os homens são irmãos e Deus é soberanamente misericordioso; amai o vosso próximo; amai os vossos inimigos; fazei o bem aos que vos persigam. Disse-lhes, outrossim: “Quem matar com a espada pela espada perecerá.” A responsabilidade, portanto, não pertence à doutrina de Jesus, mas aos que a interpretaram falsamente e a transformaram em instrumento próprio a lhes satisfazer as paixões; pertence aos que desprezaram estas palavras: “Meu reino não é deste mundo.”
Em sua profunda sabedoria, Ele tinha a previdência do que aconteceria; mas essas coisas eram inevitáveis, porque inerentes à inferioridade da natureza humana, que não podia transformar-se repentinamente. Cumpria que o Cristianismo passasse por essa longa e cruel prova de dezoito séculos para mostrar toda a sua força, visto que, malgrado todo o mal cometido em seu nome, ele saiu dela puro. Jamais esteve em causa. As invectivas sempre recaíram sobre os que dele abusaram. A cada ato de intolerância, sempre se
disse: Se o Cristianismo fosse mais bem compreendido e mais bem praticado, isso não se daria.
Quando Jesus declara: “Não creais que Eu tenha vindo trazer a paz, mas sim a divisão”, seu pensamento era este:
“Não creais que a minha doutrina se estabeleça pacificamente; ela trará lutas sangrentas, tendo por pretexto o meu nome, porque os homens não me terão compreendido, ou não me terão querido compreender. Os irmãos, separados pelas suas respectivas crenças, desembainharão a espada
um contra o outro e a divisão reinará no seio de uma mesma família, cujos membros não partilhem da mesma crença. Vim lançar fogo à Terra para expungi-la dos erros e dos preconceitos, do mesmo modo que se põe fogo a um campo para destruir nele as ervas más, e tenho pressa de que o fogo
se acenda para que a depuração seja mais rápida, visto que do conflito sairá triunfante a verdade. À guerra sucederá a paz; ao ódio dos partidos, a fraternidade universal; às trevas do fanatismo, a luz da fé esclarecida.
Então, quando o campo estiver preparado, Eu vos enviarei o Consolador, o Espírito de Verdade, que virá restabelecer todas as coisas, isto é, que, dando a conhecer o sentido verdadeiro das minhas palavras, que os homens mais esclarecidos poderão enfim compreender, porá termo à luta fratricida que desune os filhos do mesmo Deus. Cansados, afinal, de um combate sem resultado, que consigo traz unicamente a desolação e a perturbação até o seio das famílias, reconhecerão os homens onde estão seus verdadeiros
interesses, com relação a este mundo e ao outro. Verão de que lado estão os amigos e os inimigos da tranquilidade deles. Todos então se porão sob a mesma bandeira: a da caridade, e as coisas serão restabelecidas na Terra, de acordo com a verdade e os princípios que vos tenho ensinado.”
O Espiritismo vem realizar, na época prevista, as promessas do Cristo. Entretanto, não o pode fazer sem destruir os abusos. Como Jesus, ele topa com o orgulho, o egoísmo, a ambição, a cupidez, o fanatismo
cego, os quais, levados às suas últimas trincheiras, tentam barrar-lhe o caminho e lhe suscitam entraves e perseguições. Também ele, portanto, tem de combater; mas o tempo das lutas e das perseguições sanguinolentas passou; são todas de ordem moral as que terá de sofrer e próximo lhes está
o termo. As primeiras duraram séculos; estas durarão apenas alguns anos, porque a luz, em vez de partir de um único foco, irrompe de todos os pontos do globo e abrirá mais de pronto os olhos aos cegos.
Essas palavras de Jesus devem, pois, entender-se com referência às cóleras que a sua doutrina provocaria, aos conflitos momentâneos a que ia dar causa, às lutas que teria de sustentar antes de se firmar, como aconteceu aos hebreus antes de entrarem na Terra Prometida, e não como decorrentes de um desígnio premeditado de sua parte de semear a desordem e a confusão. O mal viria dos homens, e não dele, que era como o médico que se apresenta para curar, mas cujos remédios provocam uma crise salutar,
atacando os maus humores do doente.
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